Espelhos Gemeos, Pequeno Tratado Das Perversoes
O Livro Espelhos Gemeos, Pequeno Tratado Das Perversoes , trata de, Em um remoto 1980, no posfácio de Os faróis invisíveis, quinto livro de poemas de Péricles Prade, eu citava estes versos: ‘O vício é medula / de suposto sabor / A ele me devoto / […] resistindo sempre’. Poderiam ser epígrafe de Espelhos gêmeos. Comentava: ‘O vício é também per-versão e in-versão, o contrário do previsível, o solapamento do ‘natural’, do estabelecido e da sequência lógica do discurso’, a propósito de poemas ‘povoados de paradoxos, descrições de aberrações, variando desde a perversão manifesta até agressões mais sutis contra aquilo que seria a ordem ‘natural’ das coisas’. Citava Roland Barthes, em Par lui même: ‘A Lei, a Doxa, a Ciência não querem compreender que a perversão, muito simplesmente, torna feliz, ou então, mais precisamente, produz um mais: torno-me mais sensível, mais perceptivo, mais loquaz, distraio-me mais etc., e neste mais vem situar-se a diferença (e a partir daí o Texto da vida, a vida como texto)’. E Severo Sarduy, em Escrito sobre um corpo, sobre a ‘transgressão do pensamento’: ‘A única coisa que a burguesia não suporta, o que a ‘tira dos eixos’, é a ideia de que o pensamento possa pensar sobre o pensamento, de que a linguagem possa falar da linguagem, de que um autor não escreva sobre algo, mas escreva algo’. A evidente atualidade desses comentários atesta a consistência dos dezoito títulos de poesia já publicados por Péricles Prade, mais alguns inéditos e aqueles de narrativas em prosa. Mostram a unidade na diversidade. É inconfundível, mesmo alternando o poema curto, o epigrama, rigorosas disposições gráficas e formas fixas, prosas poéticas e narrativas. E, na produção recente, obras temáticas: a erótica, impressões de viagem, mitos e seus símbolos, as disciplinas e os campos do hermetismo e ocultismo. A intensidade lírica e a expressão do maravilhamento harmonizam-se com a ironia e a sátira. Seus temas e tratamentos interagem e se confundem. Principalmente, é um poeta da palavra, da leitura, da própria poesia, autor de uma grande paráfrase desta indagação vertiginosa apresentada por Octavio Paz (no ensaio Claude Lévi-Strauss ou o novo festim de Esopo): ‘se a linguagem e com ela a sociedade inteira: ritos, arte, economia, religião é um sistema de signos, que significam os signos?’. Enfrentar essa questão, disse ainda o poeta e ensaísta mexicano, é abrir as portas para o ‘demônio da analogia’ (é o título de uma prosa poética de Mallarmé). Possuído pelo mesmo demônio, Prade nos traz o inventário de transgressões e perversões deste novo livro, mostrando sua dimensão poética e filosófica. Apenas complementando o substancioso posfácio de Álvaro Cardoso Gomes neste volume, observo que o título, Espelhos gêmeos, é revelador. O que acontece quando espelhos são postos um diante do outro? Enxerga-se o infinito, pelo desdobramento da mesma imagem. Não se sabe mais o que é objeto refletido ou reflexo, representação e coisa representada. Daí a proposital confusão de símbolos e significados, palavras e coisas. O que pode parecer irrealidade delirante também é literalidade, tomando expressões ao pé da letra, pelo sentido concreto, como aquilo que designa ou simboliza. Por exemplo, nesta frase: ‘Sua extensa obra, por ser erótica, depois de pronta, é encapada com camisinhas de Vênus, importadas, dizem as boas línguas, diretamente do planeta que lhes dá o nome’. E no ‘Diário de um sapato acima de qualquer suspeita’, com a evidente troca de lugar do sentido manifesto e latente ou do signo e significado: o objeto é um fetiche, portanto, atua como tal. Através das substituições que vão se multiplicando ao infinito, realiza a poética tão claramente exposta por um de seus personagens: ‘O que me agrada é o fluxo da imaginação pura, o crime pensado, organizado e executado na mente’.
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